mainieri's

quinta-feira, setembro 30, 2010

Cena eleitoral







A cena parece, no mínimo, insólita. Lentamente, um helicóptero vai perdendo altura até aterrissar numa clareira. Num pedaço desmatado da Vila Progresso, perdida nos confins da metrópole risonha.

Do aparelho, descem homens engravatados. Seguidos de outros portando câmeras e luzes. A vila tinha sido escolhida para mostrar o descaso dos políticos da Situação no trato com os excluídos.

Logo são cercados por recicladores de lixo, desocupados, crianças remelentas e cachorros sem pedigree. Os assessores pedem para falar com o líder comunitário. Logo Antoninho, vulgo Caveira, se apresenta.

- Bom dia, dotô, nóis estamo cheio dos políticos que só prometi i não cumpre
- Bom dia seu Antoninho. Eu sou Fulano de Tal, candidato a prefeito e irei promover o progresso desta vila de belo nome.
- Sêo Fulano, promessa vocêis sempre faiz. Cumpri é que são elas...
- Qual o principal problema da Vila, seu Antoninho?
- Nois moremo perto do valão. É o Fedorão. Fede no inverno e no verão. Cria bicho.
- Transformaremos o valão mal-cheiroso em um arroio balneável, para que os moradores se refresquem nas águas.
- Assim, a gente espera, dotô
- Se eleito for minha promessa será cumprida!

Fulano de Tal vai se afastando do tumulto. Cachorros rosnam. Crianças pedem um trocado. Grávidas circulam solicitando um postinho de saúde. Velhos, um asilo. A
produtora filma tudo. Depois irão editar para uma apresentação no horário eleitoral.

Vem o pleito e Fulano de Tal vence por apertada margem de votos. A Situação diante do programa eleitoral, também, havia se mobilizado. Porém, os votos da Vila Progresso fazem a diferença.

O tempo passa e nada de Posto de Saúde, asilo. O arroio continua fazendo jus ao nome. O mau cheiro invade as casas. Mosquitos reproduzem-se nas águas escuras. Inadvertidas crianças, enlouquecidas pelo calor, jogam-se nas águas. Voltam cheias de micoses e desarranjos intestinais.

O mandato chega ao final. Aproxima-se mais uma eleição. Fulano de Tal, nada havia feito. Entrincheirado em sua confortável sala governa para os empresários e poderosos locais.

E vem, em reprise, a chuva. Inesperada, intensa, com ventos avassaladores. Uma precipitação pluviométrica de um mês inteiro cai naquele dia. O Arroio Fedorão transborda, invade e destrói casas. Comenta-se que um casal de idosos havia falecido, arrastado pelas águas.

De novo, o helicóptero, reaparece. Descem os senhores engravatados. Juntos os produtores de tevê. No entanto, são outros. A oposição de Fulano de Tal vem filmar tudo e numa última tentativa voltar ao governo municipal. Um programa bombástico será preparado.

Novamente, a Vila Progresso, mais promessas, discursos. E o arroio continua a feder e a molhar todos, indiferente aos homens e sua retórica...


Ricardo Mainieri

terça-feira, setembro 28, 2010

Atlante





Tarde
se desfez

Noite outra vez.

Hora de acordar
os continentes
(submersos)
da alma.


Ricardo Mainieri

quinta-feira, setembro 23, 2010

Invasão urbana






Desejei
ser anônimo.

Limitada
a sociedade já o é.

Perco-me pois
em meio à multidão informe.

Celulares no banheiro
Ipods no ônibus
câmeras & controles digitais.

Queria silêncio
um pouco quem sabe.

Até o sabiá não me respeita.

Seu canto
mistura-se ao pagode hip-hop
gritos & gemidos guturais.

Serei então invisível.

Aqui na terra
ou numa colônia do astral.

Na erraticidade
quem sabe
eu saboreie a paz...


Ricardo Mainieri

quarta-feira, setembro 22, 2010

Hexagrama






A terra
sobre o céu
diz o I Ching

Oráculo certeiro
diagnosticou
minha labirintite...


Ricardo Mainieri

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Este poema concorre ao texto da semana, neste site: livro da Tribo

quinta-feira, setembro 16, 2010

Ruas interiores






Menino, andava a esmo pelas ruas da cidade. Não fazia projetos nem traçava roteiros. Deixava que a tarde lhe desse a sugestão dos caminhos a percorrer.

De posse da velha calça jeans e do tênis confortável, pilotava seus pés. Não importavam as distâncias. Vencido pela noite e o cansaço, desistia. Um fictício sinal vermelho indicava seu retorno ao lar.

Deixava os adultos boquiabertos com sua milhagem diária. Eles censuravam o desgaste excessivo dos sapatos, o perigo em explorar recantos pouco seguros. No entanto, nunca o proibiam de seguir adiante.

Bem mais tarde, teve o insight do que aquelas incursões urbanas significavam.

Vislumbrou em sua busca, um desejo disfarçado de aventura. Tinha ímpetos de ganhar o mundo, tangenciar novas terras e pessoas. Transitando pelas tardes solares, espantava a insegurança. Nutria-se, basicamente, das sensações de liberdade que ousava experimentar.

Daí interagir com outras cidades, tornou-se corriqueiro em sua vida. Deixou-se guiar por seu feeling e foi conhecendo inéditos lugares e pessoas. Colecionou manhãs oceânicas, tardes urbanas, noites e madrugadas de jazz.

Por isso, talvez os relatos de viagens, ainda, o emocionem. O semblante das pessoas, as fotografias dos recantos, as vivências emolduram um conjunto harmonioso. Que ele teme desafinar.

Hoje, em seu intervalo de trabalho, saiu como garoto pelas avenidas de sempre. Solitário e aberto a todas as intempéries.

Deixou que as sensações conduzissem, novamente, seus passos. Sentiu-se como um filósofo grego em meio à urbanidade. Refletiu, despreocupadamente, entremeado a algum resquício de natureza, alheio à neurastenia das pessoas e dos automóveis.

Depois do caminho percorrido, nenhum cansaço, nenhuma dor. Desembocou dentro de si mesmo...



Ricardo Mainieri

sábado, setembro 11, 2010

Viagens da memória






Sou refém das engrenagens que movimentam a existência cotidiana. Poderosas, elas me levam e trazem, sem consulta. Enredam-me em pensamentos e situações, por vezes, sem controle. Ultimamente, como tenho sido bem-comportado, ganhei o direito de retroceder no tempo.

Posso escolher época e local. Nesta era de pouca criatividade, sugiro Porto Alegre, metade da década de setenta.

Pronto, estou de volta. A cidade reaparece em seu ritmo monótono, pano de fundo um som marcial. Entendo, estamos atravessando o que alguns chamam de “ditabranda”. Eu prefiro pensar que ela teve outra textura...

O sol brilha forte na tarde defronte ao rio. Domingo. Carrego um radinho de pilhas onde o locutor narra uma partida de futebol. Não contenho uma risada interior, penso: quanta precariedade.

Eu que conheci computadores, IPODs, MP3, televisão a cabo. Agora, me vejo resumido a um aparelho rudimentar, quem nem pilhas alcalinas aceita...

Volto ao meu equipamento. Imagino, pela voz, um senhor sisudo, de bigodes aparados. Ele fala palavras que desconheço como escrete, beque, córner, guarda-valas. Sua impostação carrega algo de formalidade.

Entremeado à narrativa, ele chama os patrocinadores. Desfilam pela memória finadas empresas. O poderoso Magazine Mesbla, J. H. Santos e suas barbadíssimas, os sanduíches da lanchonete Ribs e tantas coisas que já havia deletado.


Desligo o aparelho. Ainda posso ouvir a intervenção da reportagem que fala de um ferido conduzido ao nosocômio da Municipalidade. Num fôlego, o locutor emenda com um convite de enterro ressaltando que o féretro sairá da Capela D, do Cemitério situado na Colina Melancólica. É demais!

Subitamente, sou puxado de volta aos tempos de agora. Aterriso meio desequilibrado.Quase sou atropelado, ufa!

Não sei se choro ou se sorrio.



Ricardo Mainieri

sexta-feira, setembro 10, 2010

Manifesto





A modernidade
anseia rarefação.

Limitado oxigênio
para a sobrevivência
dos conteúdos.

Significados aquém
dos significantes.

Na pátria do estranhamento
nenhum sinal de rota
rotos signos da incompletude.

E o povo com fome
de invenção...


Ricardo Mainieri

quarta-feira, setembro 01, 2010

Reforma íntima






Casa mental
em reformas.

Repleta
de formas-pensamentos
idéias que não se reciclam.

Pó acumulado
nos desvãos da memória.

O ócio que aprisiona
a tarde sempre cinza
seriam desculpas.

No entanto tento.

Abro as janelas
dispo as cortinas.

Deixo a luz me visitar...


Ricardo Mainieri