mainieri's

quarta-feira, junho 28, 2006

A pele do asfalto é insensível à dor






Ildefonso trabalhava na Limpeza Urbana. Somava quase trinta anos de labuta. Fora indicado, lá pelos idos dos anos setenta, por um tio também gari. Sempre sério, recusara a companhia dos “biriteiros”, daqueles que faziam “corpo mole” e dos agitadores de plantão.

Com isso ganhou a confiança das chefias e, por ocasião da Constituição de 1988, tornou-se funcionário efetivo.

Era um homem discreto, de roupas idem. Apenas, quando vestia seu uniforme laranja com listras reflexivas, destoava desse seu reservado comportamento.

Seu cotidiano era repetitivo. Chegar cedo, pela manhã. Tomar um chimarrão com a chefia, discutir sobre futebol e olhar a mulher seminua na capa do jornal sensacionalista. Depois, juntar-se à equipe de trabalho, subir ao caminhão de coleta e sair pelas ruas da cidade.

Os últimos governos tinham asfaltado quase toda a metrópole. Capa de asfalto ralo, diga-se de passagem, onde se podiam ver indecisos tufos de grama. Porém, simbolizavam o cumprimento de promessas de campanha, o que tinha lá seu valor.

Além do lixo, ele e seus companheiros, recolhiam oferendas de candomblé e vários animais mortos pelas ruas e vielas da periferia.

Ildefonso amava os animais. Com grande pesar se ajoelhava e, num saco plástico, acomodava o bicho inerte e o colocava no caminhão.
Por vezes, uma discreta lágrima vertia de seu rosto. No entanto, profissionalmente, retirava o animal daquela mancha coagulada de sangue e , depois, lavava tudo com uma mangueira de pressão.

Os colegas , mais práticos, estranhavam seu comportamento, e diversas vezes, Ildefonso era vítima de chacotas. No entanto, disfarçava e se dizia adepto de São Francisco, encerrando a discussão por aí.

Numa manhã chuvosa, típica do inverno no Sul, o grupo saiu para fazer uma coleta especial. Deveriam recolher resíduos hospitalares.Para isso , vestiram uniformes emborrachados e equipamentos de proteção individual. Subiram no caminhão e se dirigiram ao Hospital Geral.

O recolhimento se deu sem maiores problemas, o treinamento para esta atividade havia sido bem sucedido.O segundo passo seria levar, cuidadosamente, estes dejetos contaminados para um lixão nos confins da cidade.

Logo, venceram as ruas mais movimentadas e entraram numa auto-estrada. O motorista resolveu acelerar, pois não havia veículos à sua frente. A chuva agora era uma garoa, mas ainda molhava o asfalto.

Numa curva, a freada, e um homem caí do veículo. Assustado, o motorista dá ré e retorna ao local para o devido socorro. Ildefonso jaz inanimado no asfalto. Como um bicho, mancha de rubro a pele negra da terra.Os colegas, ainda, tentam ouvir a pulsação.Nada. A chuva aumenta. Vai lavando a nódoa humana estampada no asfalto.Que se renova e aguarda novo habitante, insensível que é a toda dor...



Ricardo Mainieri

segunda-feira, junho 19, 2006

Abstracionismo





Curvas
seduzem retas.


No abstrato
do desenho
formas em cio.




Ricardo Mainieri

sexta-feira, junho 16, 2006

O gari e o guri







Infância, tempo que pulsa dentro da gente. Volta e meia, imagens inundam a memória e lá estamos nós. De novo.

Pois bem, minha mente viaja e pousa em Porto Alegre, bairro Menino Deus. Menino pobre, em meio a vizinhos burgueses. Porém, a meninice é mesmo um território democrático: todas as classes se misturam. E inesquecíveis "peladas" acontecem.

Assim, o futebol era nossa arena. Partidas disputadíssimas. E no final, quase sempre, brigas generalizadas. Bem se diz, em todo o Brasil, que gaúcho gosta de confronto, de um “entrevero”...

Jogava de goleiro, não conseguira colocação melhor. E, com uma defesa aqui, um "frango" memorável ali, prosseguia atuando. Cá entre nós, para falar a verdade, a maioria dos garotos detestava a posição de goleiro.

Existia, no bairro, um personagem que seguidamente deixava de lado sua vassoura e assistia às partidas. Era Xantu, um operário da Limpeza Urbana, nem um pouco fanático por seu trabalho.


Lembro-me bem, dele. Mulato alto, magro, com a boca desfalcada de vários dentes. Porém, isto não o intimidava de sorrir. E de falar de um modo confuso sobre as coisas e o mundo. Nunca se ficou sabendo se era bêbado ou louco. Ou ambos.

Certa ocasião, após uma difícil defesa, onde revivi os tempos do tricampeão Félix, Xantu não se conteve:

- Eu queria ter uma máquina de escrever pra fotografar este lance.

Gargalhadas gerais. Por muitos dias, Xantu foi motivo de troça. Ele nem se importava. Continuava seu trabalho, sorrindo.

Hoje, em meio ao trânsito caótico da cidade, vi um gari fazendo seu serviço. Lentamente, como Xantu.

Mistérios do inconsciente. Sua figura me surgiu alta e clara, na mente. E sua frase célebre...

Onde andará Xantu?

Será que já se aposentou do serviço e da vida?

Talvez, em outro plano, esteja me sorrindo. Com a generosidade simples de uma criança grande. Não sei. A vida me levou a outro bairro, outros planos de vida.

Desfaço o encanto. Acelero os passos e vou ao encontro de meus compromissos. Com Xantu no pensamento.


Ricardo Mainieri
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Publicado no site Blocos - http://www.blocosonline.com.br/home/index.php.

sábado, junho 10, 2006

Odysseia









eu vim do ground
do underground
da ante-sala
de todos arquétipos


devorei a esfinge
no leito de Édipo
e trovei com o jogral
trova dissonante


eu vim da antecâmara
do último círculo de Dante
e tomei gim com o Diabo


falou-me em dialética
enquanto fumava um cubano
baforando teses e antíteses


eu vim
eu vi
o inferno é gelado




*Andrei Portugal

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*Poetamigo das veredas da INTERNET, mais um talento cearense.

segunda-feira, junho 05, 2006

Palavrarte







(ab)sinto das palavras
(dor)mentes & agudas
surgem urgentes
na tarde.


Ricardo Mainieri

sexta-feira, junho 02, 2006

Em trânsito





Rua no rush
rugem automóveis
imóveis.

Ricardo Mainieri