mainieri's

domingo, agosto 29, 2010

Definição






Poesia
é um strip-tease
da alma.

Sou voyeur.


Ricardo Mainieri

terça-feira, agosto 24, 2010

Nost(r)algia






Nostalgia dói
impunemente.

Sentimento menor
dissonante.

De um outro tempo.

Algia da alma
que assalta.

Convulsão de imagens
sabores
fragrâncias.

Repertório afetivo
à deriva.

Barco
de memórias
sem regência.


Ricardo Mainieri

quinta-feira, agosto 19, 2010

Quarto-crescente






A bem da verdade, já não era sexta-feira e sim, madrugada de sábado. Fazia calor, o rio exalava um cheiro acre, e naquele bar, onde quase todos se conheciam, ele, que a poucos conhecia, tocava.

Não era bonito. Camisa em desalinho, sem gravata, calça social, sapato horrível, paletó esquecido numa cadeira qualquer. Viera de um casamento. E tocava como um deus. Um deus tropical, trôpego e lascivo, com olhos de anjo, boca e mãos de cafajeste.

À saída, beijou-a sem pedir licença. Longamente. A ela, que não o conhecia. Depois, olhou-a nos olhos e disse que tanto a esperara. Ela riu. Conversa fiada, pensou. Nada disse. Deixou que a beijasse de novo antes de partir.

Amanhecera. O calor aumentara. O hálito do rio sossegara. Os amigos se entreolhavam. Ninguém entendera nada. Nem ela. Mas os dias nunca mais foram banais como antes.



Márcia Maia
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Márcia Maia é médica no Recife. Também, ótima contista
e poetisa. Leiam mais em seu blog:Clique aqui

terça-feira, agosto 10, 2010

Música na noite






Te imagino
meio bossa
breve jazz.

Na noite dissonante
das capitais.

Capto
todo o efêmero
em desfile.

Destilo
tintos vinhos
com estilo.

Atento ao ilusório brilho
ao redor.

Retorno
cinza manhã.



Ricardo Mainieri

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este poema foi publicado no livro Poezz, editora Almedina, Coimbra, Portugal, 2004

quinta-feira, agosto 05, 2010

Vampirismo






Por vezes, você está distraído.
Naqueles momentos de reflexão ou de olhar para o horizonte. Assim, meio zen.
Aí, surge a figura. Normalmente gentil e frágil, a um primeiro contato.
Ele lhe conta das desventuras da vida. De sua falta de reconhecimento. Lembra um Woody Allen mais jovem.
Você sente pena, empatia. Começa a consolá-lo.
Ele, como criança birrenta, reclama de suas investidas. Reinaugura o mito do amor incondicional.Quer olhos, nariz, ouvidos, pele e boca ligados ao que fala.
Hipnotizados, por seu pensamento circular.
Deseja uma vida onde só exista o ego. O superego é um ser muito indesejado.
E você sente-se esgotada. A cada elogio, ele se reforça. A cada puxada discreta nas orelhas, ele se revolta.
E aí, amiga, você não sabe o que fazer.
Não lhe resta nem o recurso do conto de Borges, onde diante do inevitável da morte o personagem acorda.
Como um vampiro pós-moderno, ele vai lhe sugando as energias.
Um dia você explode.E a guerra está declarada.

Ricardo Mainieri

terça-feira, agosto 03, 2010

Os Desmandamentos





Salgado Maranhão e Geraldo Carneiro


(Este manifesto se rebela contra a banalização indiscriminada da poesia e a palavra aviltada pelos demagogos, e é dedicado aos que julgam que ela não é passatempo de diletantes, mas artigo de primeira necessidade.)

1- Mais uma vez virou moda dizer que a poesia agoniza, ou que a poesia morreu. E de fato ela sempre esteve morta para os não-poetas. E morreu também com Homero, com Dante, com Camões, com Baudelaire, com Drummond e com tantos outros, porque cada poeta é uma via, um beco sem saída. E a poesia é sempre plural: é o lugar dos paradoxos (viva Shakespeare!), do não-senso (viva Lewis Carroll!), mas também é o lugar da verdade. Quanto mais verdadeiro, mais poético, como dizia Novalis. Mesmo quando um poeta faz as suas conficções, acaba em verdades metafóricas. E, nestes desmandamentos, afirmamos que a poesia, quanto mais remorre, mais renasce.

2- É a linguagem que produz a realidade e a poesia. A poesia não tem camisa-de-força conceitual. Aos funcionários públicos da vanguarda, que se acham herdeiros do legado, ela finge que se dá, mas é só o discurso vazio do chefe da repartição.

3- A poesia é um problema sem solução. Felizmente. Ninguém tem a fórmula mágica, ninguém tem respostas para todos. Cada leitor que invente o seu mundo, e o desinvente a seu bel-prazer. Semelhante à culinária, cada qual que ache o seu tempero. Se for significativo, o erro vira estilo. Ou vice-versa.

4- A poesia pode tudo, só não pode ficar prosa ou senhora da razão. O novo não é reserva de mercado, nem nasce a priori. Há que se romper limites, correr riscos, ter lucidez na loucura. Mesmo que seja pelo avesso. (E, cá entre nós, não adianta ficar o tempo todo buscando o absoluto, porque isso já ficou obsoleto. Ao fim de tantos levantes, sejamos, também, irrelevantes.)

5- A poesia não é para quem a escolhe, mas para quem recebe o choque elétrico da linguagem. Não é poder ou privilégio, é um defeito que ilumina. Não vale transporte, não vale refeição, não vale copiar truques ou seguir tutores. Nem apelar, como os demagogos, para o amanhã. Mesmo porque já não há mais Canaã no Deserto dos Sinais.

6- Poema não é cadáver. É um artefato musical que sempre canta, mesmo quando tem horror à música. Quem busca entender o poema apenas cientificamente, dissecando sua morfologia como quem faz uma autópsia, perde a viagem. Conhecê-lo é entrar em seus labirintos, sem separar o corpo de sua subjetividade.

7- Não queremos a poesia prisioneira de uma única arte poética. Seremos clássicos e barrocos; pós-modernos e experimentais. Qualquer tema é e não é poético. Desde os pit-boys de Homero até a aspirina de João Cabral. Com talento, mesmo as formas antigas podem ser recicladas. Sem talento, nem com despacho na encruzilhada.

8- As influências, em geral, são bem-vindas, a não ser quando alijam a voz própria. Há poemas com tantas citações que, se extrairmos o que é dos outros, não sobra bulhufas.

9- Os conchavos e panelinhas fazem parte da natureza humana. Cada grupo tem o direito de inventar os seus heróis, para admirar a própria imagem no seu espelho narcísico. Mas o vôo do poeta é só dele e, sobretudo, da linguagem. A linguagem é o orixá, o poeta é o cavalo do santo. Ninguém é mais do que o que pode ser.

10- O problema da poesia não é só fazer bem feito, mas fazer distinto (no duplo sentido, que implica tanto em diferença, como em elegância). Ela é um exercício vital para manter o vigor da palavra. A poesia não é só questão de verdade, mas de vertigem. Por essas e por outras, é que somos poetas da vertigem: vertigem-linguagem, vertigem-vida.

Último desmandamento:
Pode jogar no lixo todos os desmandamentos anteriores, a não ser que haja sinceridade na poesia. Quem quiser adorar bezerro de ouro, que adore; quem quiser viver de pose, que mantenha sua prose. Mas que haja espaço e fé na poesia. E que ela continue a fabricar futuros, e, como fênix, se destrua e se reconstrua por toda a eternidade e mais um dia.

segunda-feira, agosto 02, 2010

Desagravo ao Poeta






Sopraram ao vento
que Pablo Neruda
era poeta medíocre.

Afundou-se o vate
no profundo oceano
de sua limitação.

Seria inveja?
Empáfia?
Provocação?

Nada sei
do mundo dos homens
de alma menor.

Apenas deixo que Neruda
e suas metáforas
viscerais & vigorosas
naveguem em mim...


Ricardo Mainieri