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segunda-feira, junho 30, 2008

Tema para um painel de tapeçaria




O general tem somente oitenta homens, e o inimigo, cinco mil. Em sua tenda de campanha o general blasfema e chora. Então escreve um manifesto inspirado, que pombos correios despejam sobre o acampamento inimigo. Duzentos soldados se bandeiam para o general. Segue-se uma escaramuça, que o general vence facilmente, e dois regimentos aderem ao seu lado. Três dias depois o inimigo tem somente oitenta homens e o general cinco mil. Então o general escreve outro manifesto, e setenta e nove homens se passam para o seu lado. Só resta um inimigo, sitiado pelo exército do general, que espera em silêncio. Transcorre a noite e o inimigo não passou para o seu lado. O general blasfema e chora em sua tenda de campanha. Ao amanhecer o inimigo desembainha lentamente a espada e avança até a tenda do general. Entra e o examina. O exército do general se dispersa. Sai o sol.


Julio Cortázar

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pesquisado no site Diario Gauche. Para acessá-loCLIQUE AQUI

quarta-feira, junho 11, 2008

Num futuro não muito distante...






Duas horas da manhã. Eles estão no porão. Fumam escondidos, longe dos olhos da Lei. Não são mais viciados em nicotina, mas sim viciados em burlar a Lei.

A Lei é o novo sistema que impera no mundo depois do grande colapso. Um sistema feito de olhares perscrutadores e constantes perseguições. Os grandes inimigos desse sistema são os fumantes. Eles tornaram-se uma casta menor, perseguida insistentemente pelo sistema de correção política. A Lei os oprimiu até que fez deles um grupo de revolta. Reúnem-se para praticar o mais terrível ato de terrorismo. O impronunciável ato de fumar. Alguns mais corajosos resolvem fumar em locais públicos. Normalmente a Lei os pega. Normalmente morrem tragados pelos presídios feitos exclusivamente para fumantes.

Os que se limitam aos porões, fumam e relembram os tempos idos: no começo glamour, grandes cenas de cinema, o cigarro associado a uma intelectualidade e poesia boas para o ego. Depois a Lei foi cercando, cerceando-os.

Lembram dos dias em que fumar era um ato desagradável para alguns. Para outros, indiferente. Alguns morriam por causa do cigarro, outros viviam até os cem anos fumando diariamente. Alguns defendiam a liberdade individual, outros, em nome dessa mesma liberdade, exigiam maiores restrições aos fumantes. Viviam bem. Mas a Lei foi tomando espaços, definindo atitudes. Primeiro, Ela criou pequenos campos de concentração dentro dos shoppings e nos restaurantes, depois foi expulsando os fumantes dos demais espaços públicos, exigindo seu afastamento do casto nariz dos não-fumantes.

Veio o grande colapso. A lei se tornou impiedosa. Fumar já não era um vício a ser tratado, mas um ato de fraqueza que necessitava ser abolido, extirpado a qualquer preço.

Eles, os fumantes, nunca entenderam porque alcoólatras, cocainômanos, apreciadores da cannabis e demais substâncias psicotrópicas tiveram sempre o apoio e a piedade da Lei. Eram doentes, vítimas, pessoas que mereciam tratamento. A Lei os ajudava. Perseguia cruelmente os produtores. Aos fumantes não foi dado essa chance. Seria por que o cigarro não tira a razão do sujeito como as outras drogas? Também não entendiam porque a Lei nunca proibiu severamente os produtores do cigarro, mas transferiu a crueldade da perseguição para os consumidores. São dúvidas que os excluídos têm nesse mundo de agora. Alguns nem sequer sabem por que fumam, repetem o ato por pura vontade de aventura, por pura necessidade de enfrentar os preceitos morais vigentes.

Os fumantes vivem infelizes. O que os consola é que os não-fumantes, os olhos da Lei, também não são felizes, pois passam o tempo todo tentando detectar fumantes, apontá-los para o sistema de exclusão.

Nesse tempo de agora, todos perdem, já que vivem em função do cigarro, seja para consumi-lo como ato de desordem, seja para caçar seus consumidores e denunciá-los à Lei.

E o mundo segue, paranóico, à espera de um próximo grande colapso.



Rubens da Cunha

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