mainieri's

quinta-feira, setembro 28, 2006

Confissões platônicas





A curva da estrada
filtrava sonhos
ensolarados.

Você não vinha
pelas veredas
de meus pensamentos.

Se escondia
nas nuvens
no limo das pedras
para zombar de meu amor.

Deixando o coração
relógio perdido
na coreografia das horas.

Você não veio
tristeza pincelou
meus olhos.

E um rio
correu solto
no coração.


Ricardo Mainieri

segunda-feira, setembro 25, 2006

Lembranças do futuro


Confesso que me sinto desconfortável quando ouço notícias sobre a venda de lugares em filas no INSS. Pessoas sem escrúpulos fazem da doença e da miséria dos outros um meio de obter algum lucro, perpetuando a famosa Lei do Gérson.

Penso , então, nos velhos e no papel subalterno que lhes foi destinado neste filme nacional, com produção pobre e sem efeitos especiais. Pois ser velho, neste país, é depender das migalhas da aposentadoria, dos parcos e deficientes serviços de saúde e ingressar no ostracismo cultural e existencial, salvo raríssimas exceções.

Relegado pelos filhos, muitas vezes confinados em instituições geriátricas, o idoso parece fazer um estágio para a morte. Carente de carinho e consideração assiste manhãs e noites se sucedendo e espera por um domingo de visitas, quando elas acontecem...

Que ironia, nas sociedades tribais o trato com o idoso é mais civilizado. Nestes grupos, eles representam os sábios, os pajés, aqueles que transmitem a tradição oral a seus descendentes. Vistos como repositórios de sabedoria, gozam de posição e prestígio.

Nos países orientais, o culto aos antepassados influenciado pela educação e a religiosidade continua muito presente. Fotos de avôs, tataravôs e antepassados, adornam os altares e oferendas são endereçadas a eles. Os jovens se dirigem aos mais velhos de forma respeitosa, quase cerimonial.

Infelizmente, estamos no Brasil, onde ter quarenta anos é quase sinônimo de aposentadoria profissional. País em que o essencial para a mídia é um corpo sarado, as intrigas do show business, o rosto sem rugas, esses signos de juventude e futilidade...

Do alto de meus quarenta e seis anos, olho adiante e sinto vertigens. Que país irá me aguardar quando as rugas mapearem meu rosto, a aposentadoria abrir as portas e meus lapsos de memória aumentarem...

Enquanto isso, teimosamente escrevo e tento dar um testemunho de meu tempo. Quem sabe não aspiro a esta “imortalidade”, a ser desencavada nos chips e semicondutores do futuro. Uma nova Era de Aquarius, magicamente, a unir jovens e maduros, todas as tribos, como naquela “aldeia global”, que Marshal Mac Luhan falava. O futuro dirá...



Ricardo Mainieri

terça-feira, setembro 19, 2006

Desa(r)mado






Vou desa(r)mado
ao teu encontro
sem risos
sem festas.

Com sal
nos olhos cansados.

Levo sob os ombros
escombros de sonhos.


Cidades devastadas
dentro de mim.


Ricardo Mainieri

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imagem gentilmente enviada pela amiga Rosângela Aliberti

quinta-feira, setembro 14, 2006

Asas partidas






Dez horas da noite , buzinas e alto-falantes a todo volume anunciam o sábado. Fez calor o dia todo e agora um vento andarilho brinca com os galhos das árvores, suavizando o ambiente.

Celso está sozinho no apartamento, último andar. Seus companheiros são o ronronar do refrigerador e a tevê sintonizada num canal qualquer.
Sábado, bem que poderia descer. Deixar seus pés traçarem um mapa desvairado pelas ruas. No entanto, aceita sua prisão domiciliar, sua solidão.

Do hall vêm ruídos abafados. Como um detetive, encosta o rosto no olho mágico e observa.Um casal jovem se abraça próximo às escadas.As mãos do rapaz procuram os seios da moça, descem mais e se quedam úmidas. A mulher suspira e morde a orelha do rapaz. As cenas se seguem, alheias ao liga-desliga das luzes automáticas. Celso resolve se desligar do quadro e desgruda-se da porta.

Volta a seu mundo e deixa o corpo se recostar no sofá. Fecha os olhos. Em sua tela mental, o cotidiano é exibido em fotogramas, num ritmo de slow-motion. Recorda-se de sua timidez, do contato monossilábico com os vizinhos, com os colegas de emprego.Desvia-se destes pensamentos e se distrai olhando a tevê. Um filme antigo mostra um cow-boy valente, porém solitário. Rejeita a identificação implícita.

Este apartamento é seu mundo.Lembra um refúgio, imune ao ataque das forças ocultas que vão, cotidianamente, apodrecendo as esperanças.Abre uma garrafa de uísque e serve-se de uma dose dupla. Uma sensação quente e boa percorre seu corpo. Renova a dose. Em breve, o volume da garrafa vai descendo, torna-se um reservatório vazio de bebida e de ilusões.

Agora o teto parece girar, é um carrossel. Rodopiam juntas suas angústias, o pôster da banda de rock, os livros de Hermann Hesse, sua solidão.A estas altas horas as pessoas devem estar se amando, dormindo, esquecendo a morte nos bares.

A madrugada vem e lhe beija o corpo quase enregelado. O canal de tevê já saiu do ar. Jaz sepultada no carpete, a garrafa de uísque vazia.Ele rasteja no chão.Rola. Como um animal abre os braços. Asas. Quer voar acima destes prédios, desta madrugada, para receber o novo dia. Domingo.


Ricardo Mainieri

terça-feira, setembro 12, 2006

Divisão

















Exilei a normalidade
em crepúsculos
distantes.

Dividi dias
mofados
em compassos
sem harmonia.

Estacionei
minha segurança
em algum bar desta cidade.

Não desanimei.

Abri os braços
saudando a primavera.
que murmurava
flores & luz
impregnando os caminhos.

Ricardo Mainieri

terça-feira, setembro 05, 2006

Oriente-se


O ambiente era aconchegante. Uma luz tépida e suave transmitia tranqüilidade. Não faltava a música instrumental, nem o aroma de sândalo se projetando pela sala em graciosas espirais de fumaça.

Adroaldo sentiu-se em paz. Sensação difícil de experimentar em sua atribulada vida. Sobrevivente de uma gastrite e de um quase infarto, fora aconselhado a procurar dar um rumo mais centrado a sua vida. Coisa que ele, agora, buscava no “ashram” do terapeuta oriental.

O mestre chamava-se Sung Lee e falava com dificuldade o português. Viera, ainda moço, para o Brasil, perseguido que era pelas tropas chinesas que haviam invadido o Tibet.
Estabeleceu-se na cidade na arte e no tratamento baseado em massagens orientais e práticas budistas.

Adroaldo sentiu os dedos do terapeuta percorrer seus pontos vitais. Sung Lee ensinava que o corpo era constituído por 12 meridianos principais, correspondendo cada um a determinado órgão ou função corporal. Filosofava que tudo no Universo pulsava entre os opostos yin e yang, energias antagônicas e complementares. E que no Ocidente as pessoas não percebiam que tudo era impermanente e a mente tagarela demais...

Vez por outra, algum ponto doía demasiado. Sung Lee explicava que era um ponto reflexo e que aquele órgão estava com excesso ou deficiência de energia e que iria sedá-lo ou ativá-lo, conforme o caso requeresse.

Hipnotizado por aquela música em compasso de adágio e pela fragrância do sândalo, Adroaldo experimentou um torpor intenso. Sentiu-se como um bebê aconchegado a seu berço, aquecido por mãos carinhosas e ancestrais. Quando percebeu, olhava seu corpo do alto do teto e Sung Lee pacientemente continuando seu trabalho.

Rapidamente, cruzou pela cidade, planando como se tivesse asas. Via os prédios, as luzes tremeluzentes, ouvia o barulho do trânsito. De repente, viu-se num outro tempo com senhores de feições orientais em posição de lótus, meditando. Curiosamente, entendia os mantras que repetiam, embora estes fossem em mandarim e ele nada soubesse desta linguagem. Começou a sentir uma paz sem precedentes e uma vontade de ficar ali para sempre.

No entanto, sentiu a mão suave de Sung Lee bater em suas costas e dizer num português sofrível.

- Amigo, terminamos o trabalho.Senti uma energia muito boa no ambiente.
- Mestre, mas eu estava no templo com amigos budistas
- Você experimentou uma viagem astral. Não se preocupe, os Mestres estão lhe permitindo conhecer este novo instrumento de sabedoria.
- Mas, fiquei com medo
- Relaxe. Você está bem amparado.

Sung Lee foi lavar as mãos. Após, um trabalho energético, sempre é recomendável, deixar as mãos sobre a água corrente para levar embora as energias, porventura, negativas, ele dizia.

Então, Adroaldo vestiu seu terno e gravata. Retirou uma cédula do bolso e pagou o tratamento, conforme o combinado.

Sung Lee, despediu-se com uma mesura, inclinando o tronco para frente e sorrindo. Recolheu o dinheiro e o depositou junto a uma imagem de Buda.

Já na rua, Adroaldo recordou-se de sua experiência espiritual. Como tinha sido lúcido tudo aquilo. Deu mais alguns passos e defrontou-se com um restaurante oriental que nunca havia notado. Decidiu entrar.

Quem sabe entre um sushi e um sashimi, não alcançasse a iluminação?

Chamou o garçom e pediu um saquê. Outra aventura se iniciava...


Ricardo Mainieri

sexta-feira, setembro 01, 2006

Retorno





Devolvam-me
certas paisagens
passagens voláteis
na memória.

Devolvam-me
tantos acordes
em dissonância
a vida agora
só diz sim...

Devolvam-me
todas as cores
fragrâncias
do imaginário mágico
que eu tinha.

Cobrem-me as contas
depois...

Ricardo Mainieri